domingo, 19 de junho de 2011

As Fontes da Alegria

Georges Bernanos, escritor francês que eu muito admiro, é um profeta. É o profeta da alegria, porque disse esta frase para mim memorável: - "O contrário de um povo cristão é um povo triste, um povo de velhos que não conhece a alegria”. (Diário de um pároco de aldeia).
Em meio a uma mensagem que ficará entre as mais trágicas destes nossos tempos, irrompe uma formidável força de alegria em toda a sua imensa bagagem literária. Todas às vezes em que o releio, e tenho-o feito em inúmeras oportunidades, aflora-me espontaneamente ao espírito a pergunta sempre repetida: donde vem o segredo de sua desconcertante alegria? E a pergunta tem a sua razão de ser, porque a alegria é o título do livro mais negro por ele escrito, "La Joie" (A Alegria), no qual conta a pavorosa agonia de uma menina inocente, Chantal de Clergerie, a pequenina santa a quem tudo roubaram, até a própria morte.
- "Minha alegria terrestre, onde é que tu te escondes? - questiona por sua vez Paul-Marie de la Croix, em Études Carmélitaines. E Gilbert K. Chesterton, no seu livro "Ortodoxie": - "Dizem que o paganismo é uma religião da alegria, ao contrário do Cristianismo, que é uma religião da tristeza. Mas é fácil provar que o paganismo não é senão tristeza, e o Cristianismo jubilosa e serena alegria".
Na verdade, este debate não significa muito para mim, porque a vida de todo ser humano é uma simbiose de alegrias e de tristezas, e a única coisa interessante em tudo isso é a maneira como alegria e tristeza se equilibram no dia a dia de cada homem e mulher.
Voltando à pergunta de Paul-Marie - "Minha alegria terrestre, onde é que tu escondes?" - pode-se afirmar que não há resposta para esta questão a não ser que, muito além dos alimentos terrestres de sua alegria - "par delá des nourritures terrestres" - como diria o ateu André Gide - homem e mulher resolutamente mergulhassem no seio do mistério que a vida lhes propõe. Este mistério, Pascal, nos seus "Pensamentos", maravilhado, o viu desvelar-se ante seus olhos: - "Deus de Abraão, Deus de Isaac, Deus de Jacó, e não de filósofos e sábios... Deus de Jesus Cristo! O mundo não Te conheceu, mas eu Te conheci. Alegria, alegria, alegria, lágrimas de alegria!”.
A todos quantos desejam reencontrar a alegria, a mesma peregrinação às fontes se impõe sem tardança. E eu tomo a liberdade de iniciá-la retomando a pergunta de Paul-Marie, epígrafe de seu belíssimo trabalho nos Études Carmélitaines: - "Minha alegria terrestre, onde é que tu te escondes?”.
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Para que homem e mulher pudessem refletir a alegria divina no recôndito espelho de sua alma, Deus os criou à Sua imagem e semelhança. E criou-lhes também, com mãos divinas, a sua alegria terrestre. É o que nos testifica o Gênesis: "Javé tomou o homem e o colocou no jardim do Éden. E fez crescer do solo toda espécie de árvores formosas de ver e boas de comer, e a árvore da vida no meio do jardim... Depois Javé modelou a mulher e a entregou ao homem para que ela fosse a sua alegria".
E o homem exclamou: - "Esta sim, é osso de meus ossos, e carne de minha carne!”.
E Deus disse em Seu Coração: - "Enquanto durar a Terra, não hão de faltar-lhe semeadura e colheita, frio e calor, verão e inverno, dia e noite.”.
E Deus viu que tudo era bom.
Alegria e belezas da terra cantadas pelos santos, por exemplo, João da Cruz: - "Mil graças derramando, Ele passou por estes campos com presteza e, enquanto os ia olhando, só com Sua figura a todos revestiu de formosura." (Cântico Espiritual).
Belezas dos astros e dos céus, lembra-nos o Eclesiástico: - "O sol, em espetáculo, proclama no seu surgir: Quão admirável é a obra do Altíssimo!"
Beleza do mundo, fonte eterna da alegria, cantam também os profetas profanos, como Keats, nas suas Odes: - "Uma migalha de beleza provoca uma alegria eterna...”.
E os astros lhe fazem eco, pelos lábios do profeta Baruc: - "Brilham em seus postos as estrelas, palpitantes de alegria. O Criador as chama e elas respondem: Aqui estamos! - cintilando com alegria para Aquele que as criou.”.
O esplendor da beleza divina esparrama-se pela criação inteira, proclama ainda o Livro Santo: - "Quão belas e desejáveis são as Suas obras! Até a menor centelha que se possa contemplar!”.
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É entre dores que Eva dá à luz seu filho primogênito, Caim. Não obstante, o grito por ela lançado aos céus é um grito de triunfo, saudando esse dom divino, uma vida que acaba de nascer: - “Eis que eu ganhei um homem com a ajuda de Javé”!

Entre este primeiro "Magnificat" e o outro, o do Novo Testamento, entre a aurora ainda vacilante e o dia sem declínio, entre Eva e Maria, existe toda uma humanidade que se sustém entre estas duas mulheres, inclusive na sua busca da alegria. Mas a mulher exultante, que não cessa de acalentar seus filhos de todos os tempos e raças, Maria de Nazaré, em quem a Alegria fez Sua morada para que se cumprissem as promessas de salvação, não pode deixar que nos esqueçamos de Eva, a mãe primeira de todos os viventes.
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Disse Javé a Abraão nas planícies da Mesopotâmia: - "Olha para o céu e conta as estrelas, se fores capaz. Assim será a tua descendência.”.
A fecundidade será sempre, para homens e mulheres, sinal da benevolência divina, já que, na perspectiva bíblica, Javé é o senhor do céu e da terra, diz-nos o Deuteronômio: - "O Senhor te concederá fartura de bens com o fruto de tuas entranhas, o fruto do gado, o fruto da terra... O Senhor te abrirá Seu tesouro de bênçãos, abençoando todo o trabalho de tuas mãos.”.
Deus fará destas alegrias terrestres Sua paternal resposta à nossa fidelidade a Ele e às Suas leis: - “Obedecei aos Meus mandamentos, para que sejais felizes para sempre, vós e vossos filhos”.
E mais: para poderem usufruir destas alegrias terrestres a eles dadas por Deus, deverão, antes de tudo, com um coração de filhos, prosternar-se diante de Deus e render-Lhe graças em todo tempo e lugar: - "Javé nos introduziu neste lugar, dando-nos esta terra onde corre leite e mel. Agora, pois, trago os primeiros frutos que Tu me deste, Senhor. (...) E depois de depositar os frutos de teu trabalho diante do Senhor teu Deus, te alegrarás por todos os bens que Ele te deu".
Em síntese, homem e mulher israelitas sempre esperaram que a sua fidelidade a Deus lhes assegurasse os bens e as alegrias terrestres. Nesse sentido, o dom da terra era uma prova do amor especial que Javé cultivava pelo povo de Israel. A fertilidade da terra era em si mesma, um sinal de predestinação. Para que essas condições favoráveis fossem mantidas, Israel tinha de viver a sua vida conforme as determinações e os mandamentos de Javé. Entretanto, sobrevindo o pecado pelo mau uso da liberdade, quantos dentre eles jamais conheceram celeiros repletos, rebanhos incontáveis, adegas borbulhantes de vinho! Para quantos deles esta vida não passou de um incessante e penoso combate! Para quantos a miséria e o abandono não lhes permitiram nem um vislumbre das belezas do mundo!
Será que as bênçãos terrestres prometidas pelos Livros Sagrados não passavam de uma cruel ironia?
Minha alegria terrestre, onde é que tu te escondes? Estarei condenado a morrer sem jamais ter-te reencontrado?
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Este gemido que vem de longe, expresso por boca humana, parece ser uma dor primeira, que remonta às origens e à finitude e contingência do mundo. Não um gemido genérico do ser vivo e sensível, não o gemido do animal ferido que sente a terra entreabrir-se para devorá-lo, mas o gemido existencial do ser humano, o gemido da alma erguida que clama por explicações para a sua alegria prometida, mas que vê frustrada. Vem de todos os cantos do mundo, século após século, esse longo gemido emendado, continuado, transmitido por todos os povos como uma tradição de amargura.
O povo de Israel, objeto das promessas mais solenes de Deus, faz chegar até nós, através dos Livros Sagrados, os ecos pungentes deste clamor secular. A recordação da Aliança, a esperança da Promessa sempre renovada não parecem suficientes para explicar a nostalgia de uma alegria que aparentemente se foi e parece não mais retornar. Para que a fome e a sede dessa alegria permanecesse em Israel, é necessário que suas raízes tenham sido mergulhadas no mais profundo de sua miséria, jorrassem do âmago do seu pecado, na voz lancinante de seus profetas.
Pecador, o povo do Antigo Testamento, mais do que qualquer outro povo, foi favorecido pela eleição e pelos dons divinos. Povo de cerviz dura, continuamente infiel a seu Deus pela prática da idolatria, a alegria de sentir-se eleito, entretanto, não o abandona mesmo nos mais atrozes castigos que o visitam, porque o homem e a mulher do Antigo Testamento têm uma intuição tão viva da majestade de Deus e do nada de Sua criatura, que um senso agudo da misericórdia divina está sempre palpitando em sua alma. Mesmo na mais profunda abjeção do pecado, encontram eles o seu Deus, como nos lembra o livro da Sabedoria: - "Ainda quando pecamos, nós somos teus".
Imersos em obsedante miséria, seja na ocupação de suas terras pelo inimigo externo, seja nas agruras do exílio, nunca lhes falta a esperança: - "Do mais profundo abismo, eu clamo a ti, Senhor!”.
As grandes almas deste povo singular vibram, sabendo que é de Deus que lhes advém o castigo e o perdão: - "Fazei-me ouvir palavras de júbilo e exultem os meus ossos que Vós quebrastes".
Mesmo quando gemem sob o peso da mão que os castiga, ainda assim celebram Aquele cuja alegria é fazer o bem. Aquele que prefere a misericórdia à justiça. Nada poderá afastar de sua alegria este homem e esta mulher, ainda que enredados no pecado e na miséria. Essa alegria continua viva no fundo dos corações, e tanto mais intensa e profunda quanto indestrutível, pois fundada sobre o Deus Eterno que não decepcionará nunca, pois é um Deus fiel. É o que nos testemunha a intensa poesia dos salmos: - "Por que estás triste, minha alma? Por que gemes dentro de mim? Espera em Deus, ainda poderei louvá-Lo, a Ele que é o meu júbilo, a minha alegria!”.
O que faz do Antigo Testamento, em todas as suas páginas, um hino à alegria, é que ele, antes de tudo, é um testemunho de amor. O amor gratuito e incondicional do seu Deus. E nada impede que a experiência deste amor desabroche na alegria. O próprio sofrimento quase sempre tem muito a ver com este amor, o combustível de que se nutre e de que se refrigera a alma.
Feliz o homem e feliz a mulher que descobrirem esta divina fonte de alegria. Para além dos manjares terrestres, não dando ouvidos senão à voz que lhes fala ao coração, ultrapassando fortalezas e fronteiras, vencendo a provação dos desertos, eles conseguirão enfim saciar sua sede nas torrentes das delícias divinas. Então seu cântico de louvor se elevará mais puro, sua alegria se tornará verdadeira, a única e indefectível alegria sob o poder do Senhor, na confissão do profeta Jeremias: - "Tu me seduziste, Javé, e eu me deixei seduzir. Foste mais forte do que eu e me subjugaste!”.
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Neste ligeiro esboço da caminhada em busca das fontes autênticas da alegria, levando como companheiros de jornada homem e mulher de Israel, já podemos ter uma resposta preliminar para a angustiante questão proposta no início: - "Minha alegria terrestre, onde é que tu te escondes?”.
Minha alegria "terrestre", eis aí o nó da questão. Os filhos de Israel, é verdade, sempre tiveram a tendência de colocar sua alegria na terra que Javé lhes prometera, e viam na fartura do leite e do mel que dela corriam o sinal infalível das bênçãos do Senhor. Mas é verdade também que em tempos mais posteriores os grandes profetas, na sua incessante pregação, viam mais longe e colocaram sua esperança muito além, num horizonte que ultrapassava todas as perspectivas do povo: - "Exulta de alegria, filha de Sião, pois eis que venho morar no seio de ti!”.
Nesta promessa, pelas palavras do profeta Zacarias, a Alegria encarnada, filha de nossa carne, será para sempre nossa, morará eternamente conosco, alegria de nossa alma, júbilo de nossa carne, pão de alegria, sal da nossa vida, bênção suprema. Não estará mais perdido nas dobras do tempo aquele dia venturoso em que os pastores da Judéia, crendo nas palavras do Anjo, partiram pressurosos em busca do presépio de Belém: - "Eu vos anuncio uma grande alegria, que será também a de todo o povo!" Dia em que nós, como eles, poderemos contemplar com nossos olhos, tocar com nossas mãos, essa Alegria que faz os anjos exultarem nos céus.
A mulher do Apocalipse, chamada "causa nostrae laetitiae" - causa da nossa alegria - nos oferece esta Alegria divina e definitiva, vinda por meio dela ao mundo.
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Chegou, portanto, a plenitude dos tempos de que nos fala o apóstolo Paulo, e é tempo de ver e ouvir a Jesus: - "Vosso pai Abraão exultou por ver o meu dia. Ele viu e se alegrou... Em verdade, eu vos digo: antes que Abraão existisse, eu sou".
É tempo também de recordar a profunda intuição de Blaise Pascal: - "Deus de Abraão... Deus de Jesus Cristo! Alegria, alegria, alegria, lágrimas de alegria!”.
A intensa e ansiosa expectativa dos profetas de Israel cumpre-se integralmente em Jesus de Nazaré, o Redentor, o rosto humano de Deus, que foi sempre o lugar divino de nossa alegria terrestre, e continuará a sê-lo por toda a eternidade. Figurado, pressentido, anunciado e esperado, Ele trabalha, provoca, leva consolo e esperança ao coração de homem e mulher do Antigo Testamento para que, na plenitude dos tempos, Sua face de desvele, Sua presença se faça cada dia mais viva e atuante entre homens e mulheres de boa vontade de todos os tempos e lugares.
Seu reinado nos corações será triunfante, Sua palavra iluminará os espíritos e nos delineará os caminhos da salvação. Sua vida, sua pregação, sua morte e ressurreição redimirão o pecado do mundo e nos revelarão o amor do Abbá/Pai. E a humanidade inteira compreenderá que a vinda do Filho do Homem, que em sua fé o "resto de Israel" já pressentia e nele encontrava sua alegria, será para nós, na Fé, na Esperança e no Amor que nos anima as primícias da vida eterna.
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Comecei estas linhas falando de Bernanos, que tenho por profeta da alegria, neste mundo tão conturbado e tão dilacerado pelo ódio e pela violência. Quero finalizá-las trazendo novamente o testemunho de Bernanos, porque sua voz é sempre atual, sempre carregada de uma pletora de verdade e de interrogações que não podemos deixar passar em silêncio: - "Os cavalheiros e as damas que bocejam nos cultos do domingo! Tu não vais querer que numa infeliz hora e meia por semana a Igreja possa ensinar-lhes a alegria!" (op.cit.).
Foi preciso ir às fontes, pois a alegria não é uma realidade que se descubra assim, ainda quente e pronta a ser mastigada. Se o livro mais sombrio de Bernanos se intitula "La Joie" - A Alegria - é porque a alegria provém de um paradoxo que deve ser vivido e experimentado, o da Cruz de Cristo. O paradoxo da Cruz e da Páscoa.
- "Minha alegria terrestre, onde é que tu te escondes?”.
E responde o profeta Isaías: - "Vós todos que tendes sede, vinde às fontes e bebei!”.
As fontes da Alegria! Elas jorram sem cessar do alto da Cruz, de um coração de carne, do coração aberto e transpassado de um Deus que quis morrer para dar-nos Sua própria Alegria!


Professor Aroldo
roldalmeida@hotmail.com

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